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Motorista da Uber conquista relações e histórias pela periferia de SP

Quebrada Tech

20/11/2019 04h01

Motorista de aplicativo aprende com histórias de vida de moradores das periferias. (Foto: Tamires Rodrigues)

Motorista já realizou mais de 1.100 viagens com o aplicativo e construiu relações com seus passageiros. Após rodar dentro e fora das periferias, ele afirma: "Tenho história para contar o dia inteiro aqui."

Por Tamires Rodrigues

"Ao entrar no carro sinta-se à vontade em, por exemplo, ligar o ar-condicionado ou o rádio. A rota é feita pelo GPS, mas estou à disposição caso queira utilizar algum caminho alternativo de sua preferência. Não sendo possível minha parada no local exato de sua solicitação por falta de vaga ou proibição de lei de trânsito, me encontrarei o mais próximo possível da sua localização com pisca-alerta ligado. Por favor, utilize o cinto de segurança, chegarei em breve. Desejo uma viagem cinco estrelas para nós. E não se esqueça de me avaliar, é muito importante para eu continuar com o atendimento. Cordialmente, Raphael, seu Uber."

Assim é o primeiro contato que o motorista de aplicativo Raphael Ferreira, 34, morador do bairro Jardim São José, em Embu das Artes (SP), manda para seus passageiros antes de entrarem em seu carro. A mensagem, segundo ele, é o primeiro passo para criar um vínculo, mostrar cordialidade e interesse em estender o diálogo, buscando um atendimento personalizado e rico em histórias de viagens e experiências de vida.

Para o motorista, os efeitos de enviar a mensagem aos passageiros são visíveis: "Quando eu mando essa mensagem as pessoas já vêm com um sorriso no rosto, desarmadas, mas quando não mando a mensagem ela chega meio tensa", diz.

A habilidade de comunicação surgiu durante os oito anos que Raphael trabalhou com vendas em lojas de calçados e roupas, quando teve que lidar com o público. Ele diz que sempre gostou de interagir com pessoas e viu no aplicativo a oportunidade  de aprofundar seu dom de cativar o próximo e gerar renda.

"Essa relação de passageiro e motorista muitas vezes se estende e se transforma em viagens longas. Por exemplo, eu atendo a funcionária de uma senhora, e hoje faço uma corrida particular para ela quase todos os dias", diz Ferreira.

O motorista começou a trabalhar com Uber após perder o emprego na área de vendas. Na época, Ferreira se sentiu desiludido e começou a estudar novas possibilidades de aliar seus talentos a outras formas de atuação profissional e de geração de renda.

"Eu peguei o aplicativo como se fosse um quebra-galho, mas, na real, tem sido uma ótima ajuda", afirma o motorista, que trabalha há quatro meses na Uber. Ele conta que nesse meio tempo passou pelo processo de adaptação à usabilidade do app, entendendo melhor como o sistema fornecia informações sobre os pontos com maior número de chamadas, bem como a configuração das áreas de risco.

Logo na primeira semana como motorista, Raphael tomou um susto. Ele atendeu uma passageira que foi extremamente grosseira. Mas aí veio sua experiência como vendedor que atendia clientes difíceis.

"Quando ela viu que o trânsito estava totalmente parado, mudou de personalidade e começou a mexer no meu perfil do aplicativo. Ela disse: Raphael, tô vendo aqui que você é casado e tem filho. Aí eu respondi: Sim, dona, bom dia. Era como se eu tivesse começado o atendimento do zero ali, entendeu?", relembra.

"Achei que ela era uma passageira secreta da Uber e que estaria fazendo uma avaliação porque era a minha primeira semana no aplicativo", diz.

O motorista já realizou mais de 1.100 viagens com o aplicativo, construindo relações com todos os passageiros. "Eu tenho história para contar o dia inteiro aqui", afirma.

Ele teve a oportunidade de circular em diversos territórios nas quebradas da cidade de São Paulo e região metropolitana, fato que o ajudou a entender mais sobre a dinâmica de bairros como Capão Redondo, Jardim Ângela, Jardim São Luís e Paraisópolis, entre outros.

Esses dias mesmo, em um sábado à noite, Ferreira conta que levou um passageiro até Mauá (Grande São Paulo). Ao aceitar a corrida, ele ficou assustado por nunca ter ido ao lugar, mas seu espírito de descoberta foi maior. Então ele aproveitou a longa viagem para escutar a história do passageiro e, quem sabe, tirar alguma lição dela.

"Ele contou a história da vida dele todinha. Disse que já foi usuário de drogas e que durante a reabilitação decidiu mudar de cidade. Ele também conheceu a minha vida dentro do carro e perguntou: você é cristão, né? Falei que sim e começamos a conversar mais".

  1. Hoje Ferreira tem como meta fazer de R$ 350 a R$ 400 por dia de trabalho. Ele diz que só vai embora para casa quando bate a meta. O tempo gasto dentro do carro normalmente varia de 10 a 12 horas.

Raphael diz que os feedbacks positivos que recebe após a corrida dão a sensação de que ele está entregando algum valor para o cotidiano dos seus passageiros. "Um dia, um passageiro desceu e disse que eu merecia mais que cinco estrelas. Eu fiquei tão feliz com isso".

Sobre os autores

O Desenrola E Não Me Enrola é um coletivo de produção jornalística que atua a partir das periferias de São Paulo, investigando fatos invisíveis que geram grandes impactos sociais na vida dos moradores e moradoras dos territórios periféricos.

Sobre o Blog

Como a vida dos moradores das periferias vem sendo impactada pela revolução digital que transformou as relações sociais, econômicas, culturais e políticas? É isso que o coletivo de jornalismo Desenrola E Não Me Enrola vai contar aqui no blog, trazendo histórias diretamente de quebrada para você conhecer de maneira mais aprofundada esse contexto social que mescla recursos mobile, consumo, comportamento, redes sociais e inovação. Site: https://desenrolaenaomenrola.com.br/