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Motoboy é herói em game que arrecada doações a famílias da periferia

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03/06/2020 04h00

Jogo "Sobrevivendo ao Coronavírus" simula corrida de um motoboy para fazer entrega de cestas básicas (Reprodução)

Projeto une tecnologia, vivência nas periferias e cultura gamer para apoiar ações solidárias de combate à pandemia de covid-19 nos territórios periféricos de São Paulo. Além de sistema de entregas, a iniciativa criou um jogo que valoriza a figura do motoboy como um ícone na luta pela sobrevivência e principalmente pela vontade de mudança social.

Por Tamires Rodrigues

O alastramento de casos de coronavírus nas periferias e favelas de São Paulo gerou impactos como o desemprego, dificuldade de isolamento social e o fim do comércio informal e ambulante, além de reduzir drasticamente as rendas das famílias. Várias campanhas de ações solidárias iniciaram a arrecadação de recursos para compra e distribuição de cestas básicas, marmitas, máscaras e kits de higiene para os moradores mais afetados pela pandemia.

Uma dessas iniciativas veio da moradora do Capão Redondo, Andreza Delgado, 24, integrante do coletivo Perifacon, que criou em abril o projeto Sobrevivendo ao Coronavírus, focado em enviar kits de produtos a mil famílias de diversas regiões da cidade. Os kits incluem uma cesta básica, material de higiene, quatro ou cinco máscaras e uma história em quadrinhos.

Mas como fazer para esses kits atravessarem a cidade? Para atrair mais interessados, o projeto criou um game de delivery, integrando voluntários para doações e pessoas que queiram realizar uma "carona solidária".

"O caroneiro se cadastra, recebe uma rota e tem a possibilidade de ir junto com um voluntário nosso fazer as entregas de cesta. É como se fosse um Uber, um sistema de entrega de cestas básicas", afirma Delgado.

"Eu tive a ideia quando comecei a receber bastante mensagem no meu WhatsApp. Eu participava de algumas coisas com pedidos de cesta básica, então eu achei que seria legal me movimentar nesse sentido durante a quarentena", diz.

Nos três primeiros dias de cadastro social, em abril, mais de 600 famílias foram registradas. Como a procura foi além do esperado, o grupo teve que encerrar as inscrições no restante do mês, retornando somente em maio. Nas primeiras 24 horas após o retorno, cerca de mil famílias foram inscritas, gerando um novo encerramento das inscrições devido à grande demanda.

"A gente está trabalhando para conseguir atender as outras mil inscrições de famílias, que residem em ocupações do bairro", afirma Delgado.

Cada cesta custa R$ 55, então para o grupo atingir a meta de mil cestas precisa arrecadar em média R$ 55 mil.

Delgado teve a ideia de ir além das plataformas de financiamento colaborativo e do marketing tradicional para arrecadar fundos. Com o amigo e desenvolvedor Rafael Braga, criou um jogo que traz diversos elementos da periferia e possui uma narrativa que se ajusta ao projeto.

No game, um motoboy tem que pegar a cesta para fazer entregas e ainda se preocupar em desviar dos carros, fazendo uma analogia com esse momento em que a periferia precisa "sobreviver para se manter no jogo".

Depósito de cestas básicas arrecadadas por campanhas na região da Capão Redondo, zona sul de São Paulo (Arquivo pessoal)

A noção de gamer como guerrilha

Quando perguntamos como Braga uniu suas vivências para a gamificação das ações solidárias, ele responde: "a questão é que sou um dev [desenvolvedor] periférico, eu faço parte de uma demografia ali, o preto, periférico, que não tem tantas facilidades como outras demografias".

O jogo foi lançado no dia 25 de maio. A data é uma homenagem aos fãs da série "O Guia do Mochileiro das Galáxias". "Foram dias inteiros trabalhando para que ele ficasse pronto, todo trabalho já foi muito recompensado", afirma o desenvolvedor, lembrando que o projeto conseguiu arrecadar mais de R$ 1.000 no primeiro dia. "Eu acho que a função desse tipo de jogo é exatamente esta: chamar atenção. Muita gente joga e acha super interessante e, através disso, acaba conhecendo o projeto", completa.

Braga diz que a ideia do jogo é trazer um cenário com muitos elementos que representam o imaginário da periferia. "O que é uma pessoa da periferia? Ela é uma pessoa que faz o corre, que está sempre ali na atividade. Ela movimenta a cidade, movimenta nosso país. Além da intenção explícita de homenagear os profissionais da moto, acabou se provando uma ligação muito intensa dessa figura com a periferia".

Umas das ferramentas utilizadas para desenvolver o jogo foi o Construct 2, um editor de jogos 2D. "Qualquer ferramenta de desenvolvimento de jogos é muito cara para mim. É muito caro para publicar no Google Play ou para iOS. Essa é uma parte que dificulta bastante para quem é da periferia", diz Braga.

Nesta fase de isolamento social, Braga está se dedicando a projetos que visam combater o covid-19 nas periferias. "O que faço na verdade é ter uma noção de gamer como guerrilha. Eu faço o que eu posso, com as ferramentas que eu tenho e da melhor forma possível".

O projeto "Sobrevivendo ao Coronavírus" conta com 30 voluntários e agora busca novas formas de se promover, pois ainda quer distribuir muitas cestas por diversos cantos de São Paulo.

Sobre os autores

O Desenrola E Não Me Enrola é um coletivo de produção jornalística que atua a partir das periferias de São Paulo, investigando fatos invisíveis que geram grandes impactos sociais na vida dos moradores e moradoras dos territórios periféricos.

Sobre o Blog

Como a vida dos moradores das periferias vem sendo impactada pela revolução digital que transformou as relações sociais, econômicas, culturais e políticas? É isso que o coletivo de jornalismo Desenrola E Não Me Enrola vai contar aqui no blog, trazendo histórias diretamente de quebrada para você conhecer de maneira mais aprofundada esse contexto social que mescla recursos mobile, consumo, comportamento, redes sociais e inovação. Site: https://desenrolaenaomenrola.com.br/