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"Veinho" Marx e mais: youtuber traduz filosofia para linguagem da periferia

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15/07/2020 04h00

"A favela também pode ter filosofia", diz o youtuber Marcelo Marques (Arquivo pessoal/ Marcelo Marques)

Jovem da periferia da Paulínia, no interior de São Paulo, cria um canal de YouTube que traduz pensamentos de filósofos utilizando exemplos do cotidiano de moradores da quebrada.

Por Tamires Rodrigues

Em menos de um mês, o canal de Youtube "Audino Vilão" ganhou mais de 68 mil inscritos. Criada por Marcelo Marques, 18, morador do Conjunto Habitacional Vida Nova, localizado na periferia de Paulínia, no interior de São Paulo, a iniciativa utiliza a linguagem da periferia, formada por gírias e jargões populares elaborados por moradores da quebrada, para traduzir ideias de pensadores e filósofos que marcaram época e moldam a forma de pensar da sociedade.

Um vídeo recente chamado "Traduzindo Karl Marx para gírias paulistas" viralizou em redes sociais como Facebook e Instagram e alcançou 190 mil visualizações.

Marques afirma que a filosofia tem o poder de cativar as pessoas a produzir conhecimento. Essa percepção veio de maneira espontânea, através de um professor que dava aula para ele na metade do ensino médio. "Eu não tive incentivo na escola porque quando estudei filosofia mal tinha aula. Eu realmente tive aula de filosofia só na metade do segundo ano do ensino médio", lembra.

Em busca de cativar outras pessoas, o jovem cursa atualmente licenciatura em História no formato EAD (ensino a distância). Ele utiliza os conteúdos baixados durante as aulas online para elaborar os roteiros dos vídeos publicados no canal.

"Eu tenho todas as aulas de filosofia baixadas. Eu dou uma revisada, converso com alguns professores que tenho contato e elaboro o roteiro, tá ligado?", diz. 

Segundo Marques, o canal nasceu para ser um meio de despertar o questionamento filosófico na vida das pessoas com uma linguagem acessível que chega às quebradas. Ele acredita que essa é uma das maneiras de "distribuir para a favela no pique Robin Hood".

O trabalho dedicado a produzir vídeos para o Youtube não é recente na vida do jovem. Antes de destacar a filosofia como principal tema das produções, ele produzia vídeos com outros conteúdos, porém foi falando sobre pensadores e filósofos que Marques descobriu um novo jeito de elaborar os conteúdos para o canal.

"Eu mudei o formato do vídeo por causa da demanda, o pessoal começou a gostar", conta ele, justificando que o vídeo sobre o "veinho gordinho e 'rouba brisa"' foi uma tentativa de tornar cômico os pensamentos de Karl Marx.

"Eu gravei o vídeo de Karl Marx na intenção de ser uma comédia, de ser um negócio um pouco mais engraçado, mas quando eu fui ver o vídeo –eu sempre assisto meus vídeos antes de postar–, eu vi que ficou algo bem didático. Aí falei: mano, por que não postar?"

Marques não edita seus vídeos. Ele apenas grava no seu celular, aprova a estética e publica na plataforma. "Eu não tenho equipamento para isso, né. Eu tenho meu notebook, que, coitado, tá veinho, não aguenta rodar [os programas de edição de vídeo] Sony Vegas, After Effects ou Premiere. Não aguenta, não".

Neste momento, onde o canal começa a dar sinais de mais engajamento para o seu público, o youtuber diz que está fazendo uma vaquinha online para investir em equipamentos que vão aprimorar a ambientação dos seus vídeos.

"Minha dificuldade mesmo é, às vezes, minha mãe me chamar no meio de uma gravação, um bagulho assim". Segundo ele, a ambientação ajudará na elaboração dos vídeos, bem como na construção da identidade do conteúdo. "Os caras passando, cortando de giro, o carro do ovo, essas coisas. Mas isso também ajuda na ambientação da favela, para a gente se sentir bastante acolhido, se sentir encaixado no vídeo", completa.

Os seguidores do canal têm uma forte influência na seleção dos assuntos abordados nos vídeos. "Eu estou atendendo alguns pedidos, tipo Espinosa. Espinosa foi muito pedido. Segunda-feira vai ter Bauman, tem muita gente me pedindo e eu vou atender", diz.

Marques está notando um crescimento na demanda de estudantes que estão se preparando para o Enem, e isso o deixa atento para atender esse público de inscritos no canal. "Boa para quem tem cursinho pago online, boa para quem o EAD funciona. Quem mora na roça se deu mal, porque não chega nem sinal de celular, imagina de internet. Quem não tem condição de ter wi-fi em casa também se deu mal. Então o governo não está nem aí, não está dando base para o estudo. Acho importante estudar pela internet, vou tentar fazer o máximo de filósofos mainstream", diz.

O youtuber revela uma lista de pensadores que serão tema dos próximos episódios de vídeos em seu canal:

"Já fechei a trilha dos socráticos, vou ver se eu trago os pré-socráticos", acrescenta.

Para dar sua contribuição para quem está se preparando para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ele está elaborando conteúdos que vão impactar uma parcela considerável de estudantes das periferias, que têm dificuldade para compreender e fazer uma leitura de mundo, a partir da obras desses pensadores.

"Eu pego a ideia do cara e falo: mano, como isso aqui está no meu dia a dia? Como isso está no dia a dia dos meus amigos? Dos meus parças? Por exemplo, hoje eu falei do dualismo cartesiano. Aí eu falei: mano, vou comparar com WhatsApp, porque faz sentido, é um bagulho que todo mundo vê, todo mundo tem, um bagulho assim", diz Marques.

Aproveitando uma frase famosa no cotidiano de seus parças, ele mostra que o conhecimento existe, mas com interpretações de mundo diferentes. "A favela também tem várias frases, entendeu? Os moleques carregam tipo 'comigo quem quiser, contra mim quem puder'. Poow! Super Maquiavel isso aí, tá ligado?", diz

O youtuber traz essa releitura da periferia para que o morador seja capaz de refletir sobre sua atual condição no seu território.

"Faço muito mais voltado para a reflexão e atitude dentro da favela, para você quebrar esse cotidiano, para você fazer mais que só suas tarefas, que você faça suas tarefas pensando", diz.

Marques diz ter o sonho de que um dia a sua mensagem chegue nas casas de várias quebradas do Brasil.

"Minha intenção é essa: fazer com que a favela também detenha o conhecimento de filosofia e que também saia filósofo da favela, que o bagulho não fique só naquele velhinho barbudo elitista cheio de dinheiro, que vai fazer um doutorado na gringa. A favela também pode ter filosofia", afirma.

Sobre os autores

O Desenrola E Não Me Enrola é um coletivo de produção jornalística que atua a partir das periferias de São Paulo, investigando fatos invisíveis que geram grandes impactos sociais na vida dos moradores e moradoras dos territórios periféricos.

Sobre o Blog

Como a vida dos moradores das periferias vem sendo impactada pela revolução digital que transformou as relações sociais, econômicas, culturais e políticas? É isso que o coletivo de jornalismo Desenrola E Não Me Enrola vai contar aqui no blog, trazendo histórias diretamente de quebrada para você conhecer de maneira mais aprofundada esse contexto social que mescla recursos mobile, consumo, comportamento, redes sociais e inovação. Site: https://desenrolaenaomenrola.com.br/