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Parteiras apoiam grávidas da quebrada pelo WhatsApp e em encontros virtuais

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29/07/2020 04h00

A parteira Ciléia Biaggioli responde dúvidas e faz atendimentos a gestantes pelo WhatsApp (Foto: Julia Biaggioli)

Você já parou para pensar como a pandemia está afetando psicologicamente e fisicamente as gestantes que moram nas periferias de São Paulo? A questão motivou a parteira Ciléia Biaggioli, 42, a adotar uma plataforma digital de reunião como ambiente para difundir o conhecimento sobre gestação e parto humanizado

Por Tamires Rodrigues

Impedido de realizar o atendimento presencial às gestantes que residem em territórios periféricos, um grupo de doulas e parteiras que fazem parte do coletivo Sopro de Vida, onde Ciléia Biaggioli,  moradora de Parelheiros, zona sul de São Paulo, é uma das integrantes, começou a pensar em formas de promover o bem-estar físico e emocional de futuras mamães durante a pandemia de covid-19.

Para Ciléia, a medicina ocidental produz pouco apoio emocional e físico para as gestantes, reduzindo a mulher apenas a um corpo que dá a luz. "Você vai para um hospital parir com pessoas completamente desconhecidas, que faz um toque em você a todo o momento sem te perguntar se você quer e se pode, né?", diz.

"Por que o médico sempre sabe mais? A gente coloca um médico no endeusamento, em um lugar que é muito negativo para gente, como se ele soubesse da gente mais do que a gente mesmo", acrescenta.

A parteira afirma que a essência do parto humanizado está no resgate de uma tradição perdida ao longo das gerações. "É o resgate de um rito de celebração, de um momento de passagem, de um nascimento de uma mãe, de um pai, de uma criança, de uma nova família", diz.

Todas as sextas-feiras, às 17 horas, ela promove encontros virtuais que visam acolher e informar gestantes ou mães na condição de pós-parto. "A gente deixa o link para o nosso grupo aberto no WhatsApp para as gestantes que quiserem entrar. Algumas gestantes têm muitas dificuldades de acesso à internet e nem sempre conseguem entrar na roda virtual, mas elas podem tirar as dúvidas no grupo de WhatsApp. A gente deixou esse momento bem aberto para poder fazer esses acolhimentos", conta Ciléia.

A qualidade dos serviços e da distribuição da internet nas periferias é um tema bastante comum que já discutimos em outras publicações no Quebrada Tech, mas no caso das gestantes, essa condição de infraestrutura gera outros impactos para além do acesso.

"A periferia não tem internet direito. Então mesmo a roda virtual é muito ruim", diz a parteira. Ela acredita que durante a pandemia, a falta de acesso à internet e a desigualdade dos direitos digitais dificultaram ainda mais o simples ato de tirar uma dúvida. "Para mulheres que quiserem fazer perguntas, a gente deixou nosso telefone e o zap na página, porque é muito difícil, né".

Para Ciléia, o WhatsApp foi a solução encontrada para atender em uma situação de urgência, apesar das dificuldades com a internet. "Às vezes demora meia hora para chegar um WhatsApp, mas ele vai chegar, entendeu? Aí é diferente de uma conversa, de uma videochamada. Se pergunta uma coisa, tem que responder ali na hora, não tem outra saída", diz.

Por conta da má qualidade da internet no distrito de Parelheiros, Ciléia conta que durante as rodas e os trabalhos que exigem um grande tráfego de dados, ela e sua família vão para a casa da sogra, localizada no Cambuci, região central de São Paulo, para poder trabalhar.

"Por exemplo, a internet hoje está impossível, e a gente está fazendo um festival online de inverno de Parelheiros. A família inteira está indo para o Cambuci porque não tem o que ser feito, a internet cai toda hora, não funciona. Você não consegue anexar, não consegue fazer as coisas. Trabalhamos com edição de vídeo, aí tem que subir para o Youtube, uma coisa que na internet do Cambuci demora dois minutos, lá demora um dia e meio", compara a parteira.

Tratar as dores

Andréa Martinelli, 26, mora na Vila Marcelo, na periferia da zona sul de São Paulo. Mãe solo, professora, pós-graduada em psicopedagogia, ela é uma das organizadoras do encontro virtual. Ela é responsável por mobilizar mulheres das periferias para a roda, pois a equipe percebe que o parto humanizado ainda é uma informação distante para gestantes periféricas. "A gente convida e muitas vezes elas não têm tempo, sabe? Esse tempo de poder parar mesmo, que é uma vez por semana, uma hora e meia, ter esse tempo para ter uma troca".

Para conseguir acessar essas mulheres grávidas, as organizadoras estão em busca de divulgar os encontros virtuais para gestantes que frequentam unidades básicas de saúde nas periferias. "A gente está tentando levar essa divulgação para a UBS, para eles passarem para as gestantes e elas saberem que existem as rodas", afirma.

Além da organização do coletivo Sopro de Vida, cada encontro conta com a colaboração de outras iniciativas e profissionais do parto humanizado, como o Mama Ekos e a doula Esther Marcondes. O trabalho de acompanhamento das gestantes é semanal, mas as organizadoras já pensam em maneiras de torná-lo diário.

Andréa diz que as rodas são importantes para desconstruir todos os conceitos pré-estabelecidos que elas aprenderam sobre gestação. "Quando a gente faz esse acompanhamento para gestantes e preparamos elas para o parto, a gente ajuda a diminuir a chance dela sofrer violência obstétrica, delas serem enganadas nos hospitais, e a gente também mostra as opções que elas têm. Se é uma gestação saudável, ela pode parir em uma casa de parto, pode parir em casa com parteira, enfim, tem outras opções", diz.

Assim como a internet, a telemedicina não chegou para todas as mulheres gestantes da periferia. Sabendo disso, as organizadoras da roda virtual utilizam a escuta como uma abordagem para tratar dores emocionais e físicas da forma mais humana e natural possível. "A gente busca sempre usar formas medicinais, usar ervas naturais, para conseguir tratar algum tipo de enjoo ou outro sintoma que a gestante esteja sentido. E também tenta trabalhar a parte emocional. Então, antes disso, a gente conversa: 'aconteceu tal coisa com você? Passou alguma coisa essa semana?' A gente vai buscando questões emocionais que levaram a mulher a sentir esses sintomas".

"Amigas que apoiam umas às outras"

Mãe da Manuela, de três meses de idade, Suzane Mayumi, 26, moradora de Parelheiros, conheceu a roda virtual por meio de Andréa Martinelli. Durante sua gestação, ela foi acompanhada pela Andréa e Ciléia até seu bebê nascer. Hoje, ela acompanha a roda para falar sobre sua experiência e como está sendo a segunda maternidade. "É mais um grupo de amigas que apoiam umas às outras", diz.

Consciente do impacto do grupo de apoio na sua gestação, ela faz um relato da experiência:

"Consegui tirar minhas dúvidas e obtive mais conhecimento na roda, pois me alertaram como não sofrer abuso no parto, como que seria o trabalho de parto, o que fazer nas situações de trabalho de parto e amamentação também, para pegar de maneira correta e não machucar a mama", conta.

A moradora teve sua primeira filha aos 19 anos. Naquela época suas maiores dificuldades foram a falta de informação, que a levou a ter experiências difíceis na sua primeira gestação.

Nas rodas durante esse período de quarentena, ela sugere para as mães doarem o leite materno. "Nessa pandemia o banco de leite caiu muito e precisa da doação para manter o estoque e  ter leite para os recém-nascidos", diz.

No final da entrevista, a parteira Ciléia faz uma analogia entre o momento atual e o processo de gestação. "Eu brinco que a quarentena é um grande 'puerpério'. O puerpério é esse momento da lua negra, o momento que o parto aconteceu e a gente entra então nessa introspecção, esse momento de amamentação que é um momento muito difícil, que a sociedade fala pouco e a gente tão pouco compreende".

Sobre os autores

O Desenrola E Não Me Enrola é um coletivo de produção jornalística que atua a partir das periferias de São Paulo, investigando fatos invisíveis que geram grandes impactos sociais na vida dos moradores e moradoras dos territórios periféricos.

Sobre o Blog

Como a vida dos moradores das periferias vem sendo impactada pela revolução digital que transformou as relações sociais, econômicas, culturais e políticas? É isso que o coletivo de jornalismo Desenrola E Não Me Enrola vai contar aqui no blog, trazendo histórias diretamente de quebrada para você conhecer de maneira mais aprofundada esse contexto social que mescla recursos mobile, consumo, comportamento, redes sociais e inovação. Site: https://desenrolaenaomenrola.com.br/